E se o mundo fosse assim... |
Durante
este primeiro ano australiano aprendi a valorizar muita coisa e a relativizar
outras tantas, a que eu atribuía excessivo relevo e que afinal não tinham importância
alguma.
Uma
das coisas que aprendi a valorizar foi a força dos amigos, a importância da
palavra escrita ou falada, o elemento cultural como laço de ligação que
ultrapassa barreiras e distâncias. Acreditem que, quando a poeira da novidade,
a excitação dos primeiros momentos começa a amenizar, quando se instala uma
certa nostalgia dos bons tempos que ficaram para trás, a solução não é chorar,
nem implorar a Deus que nos devolva as folhas rasgadas do calendário. A solução
é reconstruir a comunicação com aqueles que, como nós, valorizam as emoções e
os sentimentos e os manifestam pelas palavras. Aqui não há lugar a silêncios!
Não escrever, não telefonar, não comunicar é desistir a meio da maratona.
Outra
coisa que o destino me ensinou a valorizar foi inequivocamente a saúde.
A
22 de Julho, estava nas vésperas de iniciar uma fase nova da minha vida –
arranjara trabalho numa empresa de limpezas comerciais e industriais – a CBS –
Cleaning BusinessServices. Tinha-vos contado.
A
22 de Julho tive uma consulta num dos vinte ou trinta grandes Hospitais de
Sydney – o que fica mais próximo de nossa casa – o North Shore Hospital. Lá fui
na convicção de que as coisas iriam decorrer como rotina sem nada de
assinalável.
É
certo que desde há quatro meses trazia uma úlcera aberta na planta do pé devido
ao rebentamento de um quisto com que me habituei a conviver desde há mais de 20
anos! Pois nesse dia, a Drª Lucy Ding, de ascendência chinesa, viu-me da cabeça
aos pés e alterou uma rotina de insulino-dependência que trazia já de Portugal.
Alterou o tipo de insulina e a frequência com que a tomava (era só ao deitar e
passou a ser duas vezes por dia – de manhã após o pequeno almoço e à noite,
após o jantar). Determinou para o dia seguinte uma consulta urgente no sector de
pé-diabético que estranhei.
A
23 de Julho lá fui e passei um dia inteiro a ser examinado, a fazer testes e
exames. Fui visto por uma médica irlandesa, a Drª Angela McKenzie, que ao fim
da tarde determinou o uso de uma bota especial, ortopédica e me proibiu de
caminhar e fazer força em cima da ferida da referida úlcera, e entretanto ficou
logo marcada nova consulta para dali a três dias.
Nessa
noite tive de contactar a administração da CBS, explicar tudo o que ocorrera
nas últimas 48 horas e avisar que afinal infelizmente já me não era possível
começar a colaboração com que estavam a contar... Eles e eu! E tanto jeito me
fazia, caramba...
Três
dias depois fui visto no NSH (North Shore Hospital), por um médico australiano
(finalmente um australiano de origem!), que passou duas horas às voltas com a
planta do meu pé direito. No fim, manteve a bota ortopédica tão inestética
quanto incómoda (embora, reconheço, altamente conveniente sob o ponto de vista
médico) e informou-me que se a ferida infectasse teríamos de passar de imediato
à amputação, o que significava (acrescentou ele) que em princípio a morte
ocorreria dentro dos 5 anos seguintes, em conformidade com as estatísticas de
amputados diabéticos.
Bom,
como se imagina fiquei todo borradinho de medo e pela primeira vez, senti os
calafrios do pânico, tomando uma consciência diferente da doença que trouxe
comigo de Portugal.
A
30 de Julho voltei à consulta com o médico australiano do High Risk Foot
Clinic, Dr. Ian, de poucas falas, mas muito sereno e inspirando toda a
segurança. Afirmou que para já não notava nenhuma infecção na evolução da
úlcera e portanto o prognóstico se iria manter. Entretanto e por uma questão de
bom senso, recomendou uma consulta a um oftalmologista e se possível com
urgência. Voltei a estranhar a ênfase na “urgência”.
Consultados
os serviços hospitalares, a consulta para a Oftalmologia só seria possível dali
a um ano! O quê? Estamos em Portugal... ou na Austrália? A Bianca entretanto
apresentou a devida reclamação e decidiu levar-me a um especialista particular.
Dois
dias depois lá fomos ao oftalmologista, na baixa de Sydney. Um emigrado da
Rússia, Dr. Mark Gorbatov. Cheguei às 13h (conforme marcação prévia) e de
imediato me começaram a efectuar testes, análises e quejandos. Imaginei: bom
vão recomendar-me a mudança de lentes e pouco mais! Por volta das 5h da tarde,
o médico recebeu-me e disse que considerava estar eminente o risco de cegueira
no olho esquerdo e que eu precisava ser de imediato intervencionado. Fiquei
abalado, mas atendendo às diabetes, à idade e aos ventos da sorte, remeti-me ao
silêncio e comecei a folhear a agenda aguardando que o médico me desse
indicação de quando o tencionava fazer. Não, não é para marcar na agenda... é
para ser operado de imediato, hoje, aqui e agora! My God!
Assim
foi! Saí às 19h! Estive seis horas no oftalmologista e levei laser no olho
direito e fui operado ao olho esquerdo, onde me foi detectado um glaucoma, ou,
como ele referiu, uma macular
degeneration. Vou ter de ser operado mais três ou quatro vezes. A próxima é
já a 30 de Agosto, no dia seguinte aos meus 61 anos! Olha que bom!
No
dia seguinte tirei os pensos e estava a ver o mesmo. Afinal não havia
necessidade de actualizar as lentes e a visão não fora afectada. As diabetes
continuavam a pregar-me partidas e o risco de cegueira era grande sobretudo
porque em Portugal, nem eu, nem o médico de família tinhamos dado atenção a uma
necessária revisão aos diversos orgãos passíveis de estarem afectados pela
diabetes. É assim a assistência médica em Portugal.
Mais
tarde fui de novo ao NSH e de novo a consulta com a médica dos diabetes, Drª
Lucy Ding.
Muito
calmamente referiu que tendo estudado os resultados das minhas análises, concluira que havia uma flagrante perda de sangue internamente,devido a uma
descompensação dos níveis de ferro, pelo que recomendava uma urgente
colonscopia, devido à probabilidade de ter cancro no cólon!
Tenho
esta consulta já marcada para 16 de Agosto.
Estou,
como se imagina desesperado e muito desanimado, pois com os riscos simultaneamente
considerados de amputação, cegueira e cancro no cólon, não sei o que mais
esperar do menu das doenças. Sinto-me mesmo desanimado e sem vontade de reagir.
Fui-me abaixo, como naturalmente qualquer um iria. Deixei de ter vontade de
sair de casa, de me rir, de me divertir, de conviver.
Não
perdi ainda a esperança e sinto que no meio de todas as ameaças talvez eu
sobreviva e saia ileso como na guerra, após um ataque do inimigo, por vezes há
quem se safe incólume. É este o sentimento que me resta.
Os
pensamentos começam por se misturar e numa enorme confusão a cabeça não pára e
não se concentra em nada. O raciocínio que mais vezes ocorre é “porque a mim?
porquê eu?”. Depois, a pouco e pouco os ânimos começam a serenar, embora tudo
tão repentino e sobre a mesma pessoa seja demasiado! Hoje, um pouco mais
conformado vislumbro que apesar de tudo pode haver uma pontinha de sorte e
talvez daqui a uns anos eu me venha a rir destes apertos aflitivos em que me
encontro. Não deixo também de tomar consciência de que se tudo me correr mal,
já não vos encontrarei nem aqui, nem aí! Por outro lado penso que foi uma
benção eu ter vindo para cá, pois provavelmente em Portugal definhava e morria
sem saber de quê!
Este,
meus amigos, é o resumo destes dramáticos últimos dias que tenho vivido e
sinceramente vos confesso que não sei como vai acabar esta história.
Tenho
consciência de que vivi como pude esta minha vida de cabeça levantada, não me
pesa arrependimento nenhum, julgo que vivi já o bastante para fazer a
“derradeira viagem” e desta vida levo muitos conhecimentos, muitos momentos
bons, muitos amigos, muitas sensações felizes e dias maravilhosos.
Não
pretendo “despedir-me” de ninguém em particular, nem lamento tudo o que se tem
passado e é conscientemente que vos digo que o fim um dia tem de chegar.
Confesso que gostaria de por cá andar mais uns anos, sobretudo agora que tenho
uma companheira maravilhosa que me ama e me apoia e compreende, agora que vivo
num país bonito, digno e rico, agora que supunha ter entrado num novo capítulo
do meu livro da vida! Mas seja o que Deus quiser!
Desta
vez não há fotos
A
acompanhar a presente Crónica não haverá, como habitualmente, as fotos do
costume. Em compensação forneço-vos um link para um programa de televisão
emitido em Moscovo, onde duas jovens cantoras russas interpretaram
magnificamente uma versão da “Canção do Mar” (original da Amália Rodrigues),
acompanhadas em directo por uma excelente orquestra e no final cantam uma
quadra em russo! Magnífico como poderão constatar.
Eis
o link:
Basta
passar o rato por cima e clicar para que o link se accione e se possa assistir
a três minutos de excelência!
Entretanto,
por mero acaso descobri na Internet um muito curioso Mapa Mundi apresentado ao
contrário, de pernas para o ar – upside
down – porque de facto, nada obriga, meramente se convencionou colocar o
Norte para cima e o sul para baixo! Mas... e se começássemos a ver o Mapa Mundi
assim?
A
Austrália fica onde normalmente estamos habituados a ver o Canadá, Portugal
fica onde está o sul da Tanzânia (perto do norte de Moçambique) e por aí
fora... tudo de pernas para o ar!
Muito
curioso!
Termino
transcrevendo com a devida vénia um comentário escrito pelo meu amigo Jorge
Carnaxide, historiador que vive em Mafra e que muito prezo. Correspondemo-nos
amiúde e há bem pouco tempo atrás (ainda antes da minha crise de saúde) ele
teve a amabilidade de me escrever os seus pensamentos sobre a actual crise
política portuguesa e eu por concordar em absoluto com esta análise e por
considerá-la até pedagógica, pedi-lhe autorização para a transcrever na minha
Crónica seguinte. Aí vai.
Comentário
Político do Jorge Carnaxide
Portugal
é nesta altura, como muito bem sabes, um país exangue, num estado lastimoso e
descrente. Há muito tempo que somos uma irrelevância internacional, mas mesmo
assim fomos capazes de muito a pulso construir um razoável nível de vida. Isso
no entanto, está hoje em perda alarmante, e as perspectivas são muito sombrias.
Penso que ninguém acredita, e só não saem mais pessoas por comodismo ou
impossibilidade.
É
evidente que não se vêem soluções e ninguém espera nada dos nossos dirigentes.
Nós temos o antigo hábito de zurzir nos nossos políticos, mas isso, na minha
opinião, é um tremendo disparate, porque os nossos políticos...somos nós! Por
qualquer estranha razão, a esmagadora maioria dos portugueses adquiriu o hábito
de pensar que nós somos todos excelentes e magníficos, os políticos é que não
prestam, como se eles fossem uns extraterrestres que não fossem portugueses
como os outros; não, eles saem do mesmo sítio que nós, e reflectem obviamente
tudo aquilo que somos ou não somos. É verdade que a nossa classe política é
medíocre, mas isso só significa que nós somos igualmente medíocres. Querer
pensar que nós somos óptimos e que os outros é que não prestam é uma das
falácias da mentalidade portuguesa.
Nesta altura, como em praticamente todos os
períodos do passado, nós estamos a pagar a nossa incurável falta de cultura, de
rigor, de exigência, de saber e de conhecimento, que é o que distingue as
grandes nações do mundo de todas as outras. Infelizmente continuamos a não
perceber isto, e é claro que enquanto não se detectar a causa a doença e os
seus sintomas irão persistir.
EXCELENTE!!!
E
destafeita meus amigos, fico-me por aqui. Muito mais haveria dizer, mas como
compreenderão a disposição impede-me de continuar a escrever. Talvez mais tarde
o faça. Beijos e abraços a todos e Bem Hajam pela atenção dedicada a estas
leituras maçadoras.
Sempre
Vosso Luis Arriaga
Sydney,
aos 8 de Agosto de 2013.
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